quando as discussões já foram longe demais quando as cicatrizes doem mais do que as feridas quando o silêncio é a maior distância quando a recompensa não compensa o esforço.
Há muito a se perder
quando a solidão assusta quando a companhia completa quando os pensamentos se completam quando as mãos sempre se encaixam.
Quando a vida acontece, algumas apostas são confusas.
Domingo. Noite. Lição de casa para fazer. Fantástico na televisão, volume baixo e nada a ser ouvido. Gabriel está deitado no sofá, tentando reunir forças para fazer a lição de Geografia. Nada poderia ser mais desanimador do que aquilo. Na verdade algo poderia sim, e estava acontecendo a poucos metros de Gabriel, no quintal da casa. A sala era iluminada apenas pela televisão, e os sons vinham do quintal. Gabriel tentava desviar a atenção, mas o Fantástico não ajudava. Ele não conseguia parar de ouvir a briga dos pais no quintal. No começo as palavras eram ríspidas mas curtas. Agora a briga era composta por longas frases gritadas e seguidas de xingamentos. Gabriel tentava pensar na estúpida lição de Geografia, mas continuava inerte, deitado no sofá com o controle remoto na mão. A briga era a trilha sonora para as imagens nauseantes do Fantástico. As vozes do pai e da mãe ecoavam na sua cabeça, e ele começava a se sentir inquieto. A discussão estava mais acalorada e certamente os vizinhos ouviam o que se passava. Gabriel tentou se lembrar da alegre festa de Natal, três meses antes, mas a tentativa só resultou em uma sensação extremamente desagradável. Por alguns instantes, silêncio. Na televisão o Fantástico continuava. O silêncio é quebrado pelos passos da mãe de Gabriel, que atravessa a sala chorando. Ele finge estar dormindo no sofá, mas se sente ridículo. Gabriel, sem saber o que fazer, continua deitado no sofá. Ele ouve ao fundo o motor do carro. Também ouve o girar da chave na porta do quarto dos pais. Aumenta o volume e o Fantástico agora tem vida, enquanto que as noites de domingo seguem sendo desconfortáveis.