domingo, 1 de fevereiro de 2009

A vida poderia ser um sonho




A vida poderia ser um sonho.


Gabriel pensou, e naquele momento parecia ter sido atingido por uma rajada de vento que trazia medo e, principalmente, saudades. Ele sabia que aquele momento seria o mais difícil.
O caminhão da mudança estava pronto para ir, todos os móveis e objetos haviam sido retirados da casa.
Gabriel não esqueceria a data; 3 de dezembro.
O terceiro colegial ficara para trás, todas as provas, os professores, os muitos colegas, e os três amigos.
Três grandes amigos.
Gabriel achava que nessa época do ano estaria se preocupando com o vestibular; não imaginava que houvesse uma situação na qual ele desejasse estar se preocupando com o vestibular.
O vestibular parecia algo distante, como as princesas e rainhas das histórias que sua avó lhe contara para fazê-lo dormir, anos atrás.
Foi preciso a buzina do carro dos pais para chamar Gabriel de volta à realidade; ele estava de costas para a rua, na calçada, olhando a casa onde crescera.
Ele não chorou, na verdade nunca nem cogitara essa possibilidade. Ele não demonstrava os sentimentos; nenhum deles. Dois meses antes do dia daquela mudança os pais anunciaram a decisão para Gabriel e a irmã mais nova. No final do ano eles se mudariam para uma cidade menor, num estado distante.
A inscrição do vestibular seria cancelada, no outro semestre ele se inscreveria numa faculdade já na nova cidade.
Gabriel, como de costume, não demonstrou nenhuma reação em relação à mudança para a cidade estranha. Não colocou no rosto o sorriso que o resto da família sustentava, e também não esboçou resistência. Mas a notícia o abalara. Iria para longe dos amigos, dos locais que conhecia, dos rostos familiares. Iria para o sotaque estranho que tanto desgostava; iria para o calor insuportável.
E aquele era seu futuro; ao menos futuro é a palavra que estranhamente todos começam a usar quando você está no final do terceiro colegial.
Tudo que sentia em relação à mudança era um vazio.
Vazio pela vida que perdera ali onde era confortável e vivia entre amigos e pessoas conhecidas.
Entrou no carro, sabendo que aquele seria a pior viagem de sua vida. A irmã era muito pequena para entender, e para ela tudo era motivo de festa.
O pior momento daquele processo fora no dia anterior, quando Gabriel se despediu dos três amigos e anotou na agenda o endereço e telefone de cada um. Um desses amigos lhe dera um livro de presente, que ele separou para ler na viagem.
Enquanto as paisagens mudavam do lado de fora, Gabriel lia compulsivamente. Não queria perder o olhar para o lado de fora, nas passagens de tempo, nos postos de gasolina e pousadas de beira de estrada. Não queria aceitar que aquilo era uma viagem, não queria se ver no meio do caminho para longe de tudo.
Mergulhara no livro, ao ponto de se imaginar na história; não como um personagem, mas como uma testemunha invisível, acompanhando tudo de perto. Vivendo as alegrias e aventuras naquele mundo mágico, distante, naquele mundo de sonhos.


A vida poderia ser um sonho.


O primeiro dia de viagem chegava ao fim, quando, ao fechar o livro, Gabriel novamente pensou no que a vida poderia ser. O escuro da noite se misturava às luzes fracas dos postes da estrada, e esses postes começavam a aumentar quando algum tipo de hotel ou posto de serviços se aproximava.
A família estava esgotada depois de um dia inteiro de viagem. Nem metade do caminho havia sido percorrido.
Alguns caminhões estacionados no fundo do posto, e alguns carros de passeio em frente a um prédio pequeno, de dois andares, mas comprido. Ali era a pousada.
O verão que se aproximava já deixara as noites quentes, mas ainda agradáveis. Soprava uma brisa diferente, que Gabriel pensou ser típica das estradas, onde não havia prédios e casas para bloquear o vento.
Dois quartos, um para os pais e a menina, outro para Gabriel.
Na mochila o sabonete, escova de dentes e o pijama. No bolso, o livro.
Depois do banho, o jantar; e todos se recolheram. Gabriel deitou no colchão estranho da pousada, sentiu o cansaço do dia inteiro no banco de trás do carro pesar sobre seus ombros.
Sabia que os pais estavam felizes, e os ressentia tremendamente por isso. Porque eles achavam felicidade em algo que o fazia sofrer.
Leu mais.
A história estava mais interessante, o protagonista acabara de aprender uma lição de vida inesquecível. Fora uma passagem muito bem construída, cativante, que novamente transformara Gabriel naquela testemunha invisível que habitava o mundo dos livros. Com a passagem, a negação que vinha sustentando ao longo do dia se destruíra. Encarou a distância da realidade para o mundo do livro. Percebeu que a alegria que tinha ao se ver no mundo era na verdade um contraponto ao mundo real.
Fechou o livro e deslizou no colchão. No quarto escuro o cansaço pesou, e o alívio do corpo estirado sob o ventilador precipitou o sono. Gabriel desejava que o sono viesse logo; queria, mais do que nunca, aquele mergulho no desconhecido. Pensou como desprezara esse aspecto misterioso e encantador do sono.
Era como o livro, mais um salto para outra realidade. Desejou que o salto fosse longo, e que a queda nunca chegasse. Desejou aquela sensação de perda da noção de tempo.
Viu um lado do sono que nunca antes vira. Viu o refúgio, viu o abrigo mágico.
Mais do que nunca, mais do que na manhã, na saída de casa, e mais do que nas horas de estrada, desejou novamente.
Desejou profundamente.


A vida poderia ser um sonho.

2 comentários:

  1. Vi seu blog no de uma amiga...
    adorei, vc escreve mto bem.
    Vou guardar seu link pra passar sempre aki!
    bjos

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  2. ah, as mudanças! difícil lidar com elas...

    seria mto mais fácil se pudéssemos simplesmente basear nossa vida em um conto, não?! mas temos que ser como o gabriel... e esperar "a queda".. hahah!

    mto bom, Santana!

    abraçoo

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